Ecocentrismo: A forma e o estado da água

Março de 2018

O filme A forma da água (The Shape of Water, 2017) do diretor mexicano Guillermo del Toro, ganhador do Oscar 2018, deve chegar à Netflix ainda este ano e parece não ter sido submetido a uma crítica ambiental massificada na internet até o momento. Pode passar despercebida a “criatura” híbrida de homem e peixe encontrada na Amazônia brasileira, capturada e levada até uma base militar norte-americana onde é mantida em cativeiros para pesquisa? A narrativa forja o trânsito de comportamentos, sentidos humanos e animais do personagem “anfíbio” nos espaços aquáticos e terrestres, mas ela própria dá pistas às contestações por parte do espectador mais atento contra estas representações.

Os fatos são vistos sob o ponto de vista da protagonista muda cujos desejos são satisfeitos pelo “anfíbio”. O diálogo silencioso entre os dois é mediado por ovos cozidos entregues ao humano/não humano para saciar sua fome. A pista dos sentidos construídos e transmitidos não está na forma e sim no estado dos corpos. A protagonista altera o estado do ovo de cru a comestível através do estado híbrido da água líquida e gasosa, mantendo o estado híbrido da “criatura” nos espaços urbanos por meio da pele sempre úmida e fresca (o filme não sugere que, sem água, ela seria apenas humana). A “natureza do anfíbio” é diferente da natureza do ovo. A mudança das formas da água no tanque do “laboratório” ou na banheira da casa da protagonista altera apenas os sentidos da condição da “criatura”: de aprisionada a livre. O estado da água é que determina a manutenção ou a mudança do estado dos seres e objetos. O estado líquido da água conserva a expectativa de uma relação amorosa entre a mulher e o homem-animal. Portanto, o título do filme não é pista para uma leitura crítica ambiental do personagem.

Os sentidos antropogênicos da narrativa, carregados de ideologias humanas, guiam os espectadores no debate acerca do utilitarismo dos animais. A relação de zoofilia entre os personagens provoca o pensamento sobre a projeção das formas desejadas em um ser não humano. Esta provocação pode ser esclarecida e diluída ao continuarmos na pista da forma do ovo. A água em estado híbrido líquido e gasoso transforma o ovo, todavia não muda sua forma: ele continua oval. A “criatura” não muda de forma “anfíbia” dentro e fora da água, no entanto muda de estado se não manter a pele úmida; a protagonista conserva seu estado animal para tê-lo como humano. A forma dos animais é diferente do estado deles atribuído pelas ações da natureza e pelas ações humanas. Só mudamos as formas dos corpos por meio da força, da violência ou da imaginação. Neste caso, a forma humana/não humana e seu estado vão ser carregados de sentidos atribuídos pelo diretor e roteirista do filme, e pelos espectadores. Pode-se vislumbrar uma crítica à supremacia de classe e de raça diante da relação entre uma excluída social, a faxineira muda, e uma “criatura” excêntrica aos custos de uma representação ambiental problemática.

Seria o personagem um animal numa metáfora humana ou um humano numa metáfora animal? Nos dois casos temos uma armadilha, uma alegoria antropocêntrica, através da qual todos os desejos são projetados e satisfeitos. A protagonista liberta a “criatura” do cativeiro “científico”, o “laboratório” onde é estudada, e mantém sua forma “anfíbia”, porém não a salva do apelativo humano de ter as vontades realizadas, inclusive as sexuais. Com esta afirmação não queremos desmerecer a narrativa cinematográfica, até porque ela dá pistas acerca da própria problemática construída. Entendemos que o cinema contemporâneo legitima o exercício de “sacrifício” mental por parte de quem está sentado na poltrona. É preciso desconfiar dos enredos e desenquadrar os animais de nossas expectativas e vontades, mas para a libertação dos animais acontecer precisamos olhar com as perspectivas deles. Assim, as formas dos seres e objetos não estarão atravessadas pelos estados carregados de ideologias humanas.

Revisão: Ana Lúcia de Sena Cavalcante



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